Thursday, January 30, 2020

A inocência perdida




Por Fabíola Tarapanoff


       Trilha sonora envolvente, carros conversíveis e palmeiras balançando ao vento. É 1969 e tudo é possível na cidade dos anjos. O star system já foi questionado pelos enfant terribles do cinema autoral, como John Cassavettes e não é à toa que o filme Era uma vez em Hollywood foca em um deles: Roman Polanski. Antes da polêmica de ser acusado de pedofilia, Polanski era o diretor cult do momento, ao ter produzido O bebê de Rosemary e namorava uma estrela em ascensão: Sharon Tate. Tudo parece perfeito e repleto de glamour nas festas repletas de celebridades em mansões como do dono da Playboy, Hugh Hefner. Mas um pouco abaixo da superfície, havia uma sociedade em ebulição: movimento hippie, Guerra do Vietnã, protestos em todo mundo contra ditaduras, um caldeirão que leva ao surgimento do melhor e do pior da humanidade. Foi a época em que surgiu a seita que seguia Charles Mason: Charles "Tex" Watson, Susan Atkins, Patrícia Krenwinkel e Linda Kasabian. No dia 8 de agosto de 1960 eles invadiram a casa de Cielo Drive a mando de Mason, matando com 16 facadas a jovem atriz, que estava grávida. Mataram ainda Jay Sebring (seu ex-namorado), Abigail Folger e Wojciech Frykowski. Na casa também estavam o caseiro William Garretson, que morava em uma construção menor afastada da casa principal e seu amigo, o estudante de 18 anos, Steven Parent. Na noite seguinte, o mesmo grupo, acrescido de Steve Grogan e Leslie Van Houten, mataria de forma bárbara o casal Leno e Rosemary LaBianca. Em 1974, Vicent Bugliosi (promotor de acusação de Mason e dos membros da seita, condenados à pena máxima) escreveu o livro Helter Skelter (uma das músicas dos Beatles favoritas de Mason), contando em detalhes sobre esses casos. 

    Em sua nona obra, Tarantino continua usando seus recursos como ninguém: apresenta histórias cruzadas de vários personagens que em um determinado momento se encontram, o que confere sabor à narrativa, a auto-referência e momentos catárticos, com explosão de violência. A história principal é do ator Rick Dalton (Leonardo Di Caprio, brilhante no papel), que acha que sua carreira está em decadência, depois de trabalhar em filmes de ação e Western. Ele sempre é acompanhado por Cliff (Brad Pitt, ganhador do Globo de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante). Dalton recebe o convite do produtor de cinema interpretado por Al Pacino para fazer western spaghetti e filmes de espionagem na Itália e entra em crise se deve aceitar o convite, pois percebe a necessidade de se reinventar, já que novos galãs surgem. Enquanto isso, Cliff, que faz tudo para seu parceiro de trabalho, procura uma forma de conseguir mais trabalhos como dublê, pois se Dalton for para a Itália ele pode ser dispensado. Nesse meio tempo, Dalton se anima ao descobrir que Sharon Tate (Margot Robbie) e Roman Polanski (Rafal Zawierucha) são seus vizinhos. Cliff também vai dar carona para uma garota, que depois descobrimos que faz parte da seita de Charles Manson e mora no Rancho Spahn.

    O filme mostra ainda a atriz Sharon Tate (Margot Robbie) e sua vida em Los Angeles, acompanhando o marido Roman Polanski e cercada por seus amigos e ex-noivo Jay. Tate é apresentada como uma atriz em início de carreira e que sonha ter sucesso em Hollywood.
É interessante a cena em que vai ao cinema e fica observando a reação das pessoas enquanto assiste ao filme Arma secreta contra Matt Helm (1968, dirigido por Phil Karlson) em que atua com Bruce Lee (Mike Moh).
 
    Uma curiosidade é que na cena Tarantino mostra os pés da atriz, revelando a obsessão por apresentar pés femininos, ressaltada em outras obras como Kill Bill e Pulp Fiction, além da intertextualidade com outros filmes seus, ao apresentar os cigarros "Red Apple" (Pulp Fiction, Kill Bill, Bastardos Inglórios e até em Os oito odiados) e citar o personagem Antonio Marghereti (disfarce do sargento Dony Donowitz, interpretado por Eli Roth em Bastardos Inglórios), como diretor de um dos filmes de Dalton na fase italiana. Essa auto-referência ao seu universo cinematográfico aparece também ao apresentar no filme as filhas dos atores que são queridos, como Bruce Willis (Rumer Willis) e Uma Thurman (Maya Hawke, que fez sucesso em Stranger Things) e ao fazer uma homenagem a Jackie Brown, na cena em que Cliff, Dalton e sua nova esposa retornam da Itália, descendo no famoso aeroporto de Los Angeles, com sua parede de pastilhas coloridas.




   Com uma trilha sonora envolvente, que inclui sucessos como California Dreamin do The Mama and Papas (na versão de José Feliciano), Mrs. Robinson, de Simon e Garfunkel, Good thing, de Paul Revere e The Raiders e Out of Time, dos The Rolling Stones, Tarantino constrói uma obra com momentos inesquecíveis, como o divertido encontro entre Dalton e a precoce atriz mirim Trudi (a talentosa e graciosa Julia Butters), que dá conselhos para a sua carreira. Há ainda o momento em que o ator faz uma bela cena e supera sua insegurança e a briga entre Cliff e Bruce Lee, que foi criticada pela própria família do astro de kung fu, por mostrá-lo de forma arrogante.
   Vale destacar ainda os movimentos de câmera, como a insistência em mostrar os personagens de costas dirigindo seus automóveis e os sucessivos planos-sequência, quando Dalton está filmando um faroeste. A produção é uma das mais indicadas ao Oscar 2020, em 10 categorias, como Melhor Filme, Ator e Direção.

   Apesar de o início transcorrer de forma mais lenta, saboreando o glamour dos anos 1960, o final é ágil e há uma verdadeira catarse, com explosão de violência. O interessante é que o diretor repete a fórmula de outros filmes ao recorrer à "justiça histórica", mudando alguns acontecimentos reais, como em Bastardos Inglórios, em que a sobrevivente judia Shoshanna mata Hitler e seus compatriotas incendiando um cinema em Paris ou em Django Livre, em que Django açoita os senhores que o escravizaram. O diretor apresenta personagens reais como Steve McQueen e Sharon Tate, mas muda alguns fatos com o intuito de inovar na trama e surpreender o espectador. Por isso é preciso atenção para compreender o que é verdade e fake em seus filmes, mas isso não tira a graça de ver uma obra inteligente e bem-produzida, uma verdadeira homenagem a uma era que não existe mais. Uma reflexão sobre a mudança na cidade dos anjos e a respeito de nossa sociedade, de como a inocência e o glamour perdidos, frente à banalização da violência.



FICHA TÉCNICA
Era uma vez em Hollywood (Once upon a time in Hollywood, EUA, 2018)
Direção: Quentin Tarantino
Rick Dalton – Leonardo Di Caprio
Cliff Booth - Brad Pitt
Sharon Tate – Margot Robbie
Jay Sebring - Emile Hirsch
Kitty Kat - Margaret Qualley 
James Stacy - Timothy Olyphant 
Trudie - Julia Butters 
Tex – Austin Butler 
Lynette "Squeaky" Fromme - Dakota Fanning 
George Spahn - Bruce Dern 
Bruce Lee - Mike Moh
Wayne Maunder alias Scotty Lancer - Luke Perry 
Steve McQueen- Damian Lewis
Marvin Shwarz - Al Pacino
Sam Wanamaker - Nicholas Hammond 
Roman Polanski - Rafal Zawierucha 
Francesca Capucci - Lorenza Izzo
Voytek Frykowski - Costa Ronin 

ROTEIRO
Roteirista - Quentin Tarantino

PRODUÇÃO
Produtor - David Heyman 
Produtor - Quentin Tarantino

EQUIPE TÉCNICA
Diretor de fotografia - Robert Richardson

EMPRESAS ENVOLVIDAS
Distribuição internacional / Exportação - Sony Pictures Releasing International 
Produção - Heyday Films
Produção - Bona International Film Production
Produção - Columbia Pictures
Produção - Sony Pictures Entertainment
Distribuidor brasileiro (Lançamento) - Sony Pictures